Faz tempo que tem uma frase reverberando com força aqui: “faz silêncio dentro de mim”. Ela surge toda vez que sento para escrever algo por aqui. Silêncio não é sinônimo de vazio: quando ficamos em frente ao mar, percebemos que ele tem um ruído silencioso de quem tem muito a dizer, mas dificuldade em se expressar com qualquer outra coisa que não seja movimento. Acho que tenho me sentido assim nos últimos meses.
Tenho lido bastante. E tenho amado montar vídeos, criar pequenas histórias através de uma poesia em movimento que talvez só eu entenda. Me encanto com tanto. Adoro acompanhar quem é capaz de escrever de forma tão genuína e vulnerável, quem consegue ser direta e sem floreios, traduzir o que pensa de maneira cativante e sem se levar muito a sério. Releio textos que escrevia dez, quinze anos atrás e admiro a minha espontaneidade num “universo online” que não tinha a dimensão que tem hoje, em que tudo o que publicamos assume um peso imenso, em que forças tempestuosas tomam conta até mesmo do que era pra ser absolutamente banal. Longe de mim ser saudosista, ou reivindicar um passado em que tantas coisas eram tão piores em tantos sentidos: talvez eu sinta falta mais de quem eu era naquela época do que do mundo que me cercava, do qual me lembro pouco, apenas recortes selecionados. Mas queria retomar aquele fôlego, aquele jeito de ver e sentir, de engolir tudo.
Acho que tem a ver com fazer 40 em poucos meses. Lembranças sem contexto algum vêm me visitar ao longo do dia — como semana passada, quando fui tomar banho e sentia uma dor assombrosa na virilha, e do nada me ocorreu que quando eu tinha uns quatro ou cinco anos estava no ar a novela “Top Model”: meus pais nem deixavam a gente assistir novela, mas a música-tema do casal principal, “Oceano”, tocava em tudo quanto era lugar, porque as novelas naquela época moviam mares e montanhas ao redor do país. E me lembrei do quanto eu achava linda, linda, linda aquela música, mesmo sem entender nada do que Djavan queria dizer com a letra (repare: eu não tinha nem cinco anos). Então fui pro banho rindo sozinha pensando na criança metida e sabichona que eu fui, sempre enfurnada no universo dos adultos, mas que genuinamente se encantava com uma música que falava que amar é como um deserto e seus temores. Ainda hoje, quando a ouço, me vem à mente a vista da janela do carro quando paramos num posto de gasolina para pegar a estrada voltando de um dos nossos verões em Caraguá. Eu tinha muita sede de mundo e Djavan me contava, com sua voz aveludada, que um amor quando deságua na gente é um oceano, nos faz esquecer que amar é quase uma dor. Nos meus romances inventados tudo o que ele dizia fazia todo o sentido, mesmo sem eu ter vivido nada ainda: eu estava sempre apaixonada pela vida e seus mistérios, por tudo o que ainda iria vir a descobrir e conhecer e experimentar.
Então… foram exatamente toda essa ânsia e o excesso de movimento que me fizeram levar um tombo semana passada. Mais um, este ano. O primeiro, em abril, rompeu o ligamento do meu tornozelo esquerdo e me rendeu semanas de repouso e imobilização, meses de recuperação e um cuidado agora redobrado com ruas irregulares (de remendado já basta meu coração). O de agora foi um escorregão nos últimos degraus da escada, bem menos grave: o saldo foi uma xícara quebrada, uma contratura na virilha e antiinflamatório por uns dias. A dor dilacerante durou pouco, o suficiente para me lembrar de como pode doer estar viva — às vezes é uma rejeição, noutras um tombo literal mesmo. Quem quer engolir tudo vez ou outra vai engasgar, faz parte. Eu caio o tempo todo e continuo seguindo.
Desde pequena meu irmão e meu primo me chamavam de "pata" por ser muito desengonçada — e uma viagem de trilha com amigos em 2019 me mostrou que pouco mudou nessas mais de três décadas: quem foi a única do grupo a levar um tombo dentro da caverna e machucar o joelho? A cair nas pedras a caminho da cachoeira? A quase fraturar o pé ao escorregar numa rocha saindo do banho de rio? A ter que ser escoltada para todo canto?
Um dos membros da nossa turma, que é guia na Chapada Diamantina, admitiu que eu sou o tipo de viajante que ele mais teme ter em seu grupo, porque eu sou exatamente aquela que "certamente vai dar problema". Ele segurou na minha mão em todos os trechos que ofereciam risco, como se eu fosse uma criança que requer cuidados extras, e embora meu lado "mulher-adulta-independente-dona-de-mim" quisesse dar conta de tudo sem apoio, eu que não seria boba de recusar ajuda e ser responsável por quebrar a cara sozinha naquelas cavernas escuras e cheias de aranhas.
Se eu dissesse que tudo isso não me afeta em nada estaria mentindo: é óbvio que nas vezes seguintes em que desci por todas aquelas pedras escorregadias eu já fui muito mais cautelosa e cheia de atenção; entrei de tênis dentro da cachoeira porque o receio de machucar os pés ainda era maior que o ridículo de não estar descalça, e algumas vezes pensei em dar meia volta porque eu não iria conseguir — e não é assim sempre? Registramos que algo nos fere e não queremos sentir aquilo de novo, porque nosso senso de preservação é mais forte. Porém, mesmo de tênis na cachoeira ou aceitando uma mão paciente e amiga para atravessar qualquer caminho sem me estatelar no chão, eu não desisti em nenhum momento. E fiquei orgulhosa de mim. Este tem sido o meu objetivo: não deixar de tentar, mesmo com as voltas que a vida dá, com os tombos que a gente leva, com todos os "nãos" onde tudo o que a gente mais queria era um "sim". Aprender que a gente levanta se cair. Que a gente se cura se machucar. Que podemos ser um pouco mais cuidadosos da próxima vez, porque não há nada errado em olhar antes de mergulhar: importante é apenas não deixar o medo ganhar.1
A última semana teve mudança de planos, repouso forçado, estômago doído de remédio e mais um cai-levanta-volta-retoma. Fácil não é, mas seguimos: dia desses, estava num desses momentos bem desesperançosos de tudo, e uma daquelas amigas que sempre trazem luz para dias de céu escuro me disse: “continue a nadar. O que eu gostaria que você focasse e acreditasse era: continue a nadar.” Como a Dory, a peixinha que não tem memória mas tem sempre muita boa vontade e fé no futuro, ela queria que eu não desistisse de ir em frente. Parece banal, mas desde então eu sempre me lembro disso: seguir adiante, apesar de. Um dia por vez. Continuar a nadar hoje, e hoje, e hoje. Quando a gente percebe, estamos nadando há um certo tempo, e um bom caminho já ficou para trás — com sorte nem sabemos mais o que estava comprimindo o peito naquele dia em que decidimos pedir ajuda.
É uma conclusão talvez simplista, porém verdadeira, me dar conta de que só me machuco porque estou sempre em movimento: ninguém cai se estiver parado. É desafiador, muitas vezes cansativo e estressante, frustrante, reconheço. Mas também recompensador em tantos sentidos. Se ficasse apenas quietinha não levaria tantos tombos, não torceria o tornozelo nem machucaria a virilha, não teria lesões nem rasgos no coração. E quanta vida deixaria de ter vivido, também. Quanta coisa não teria visto, experimentado, sabido. Com certeza me machuco mesmo muito mais sendo assim, e teimando em viver em ação. Mas qual seria a opção? Parada não vou ficar. E, quando tudo parecer um pouco nebuloso e difícil, estender a mão a quem não quer de jeito nenhum me deixar cair e ouvir carinhosamente: continue a nadar.
ᡣ𐭩 DO ARQUIVO:
o drops escolhido do arquivo de hoje é de exatos seis anos atrás, época incendiária de eleição presidencial, e fala de incêndios figurados e literais, além de ter uma seleção de links enxuta e especial com afagos e afeto para acalmar corações aflitos em tempos incertos:
ᡣ𐭩 DOS EXCLUSIVOS:
o último drops para assinantes pagos fala sobre a solidão “grande e árida" do fim de uma amizade, e tem prensadinho de links com ângulos e poéticas sobre morte e vida, curiosidade sobre uma das cenas mais sexies do cinema, a arte de j. borges, autorretratos e reflexões pertinentes:
Ambos os textos (assim como tudo o que está no arquivo completo), estão disponíveis apenas para os assinantes pagos, e eu adoraria que você considerasse contribuir ღ
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a pequena mágica do presente
agora uma pausa rápida para um momento auto-jabá: trabalho há duas décadas com conteúdo online e impresso e, de uns tempos para cá, comecei a produzir material para amigos e conhecidos como "ghost writer": desde textos para newsletters corporativas até posts e reels. tem sido algo que tenho gostado muito de fazer e tem me trazido novas oportunidades e perspectivas (além de ajudar a pagar os boletos né? que todos temos, não podemos negar haha ;)
também faço curadoria de materiais para relatórios e guias personalizados para são paulo, após anos e anos de experiência acumulada no rent a local friend desde 2009 (tem alguns exemplos e matérias aqui).
se você tem interesse em algo parecido (para seu perfil pessoal ou profissional), ou quiser saber mais, me manda um alô! é só responder este email diretamente que a gente conversa, ou clique aqui:
por hoje é só. espero que você sempre encontre uma mão estendida quando precisar e quem acenda a luz se tudo parecer escuro — e que você continue a nadar, apesar dos pesares.
meu outubro está cheio de planos e possibilidades, e quero que ele venha assim bem cheio e generoso. me conta do seu? <3
obrigada por chegar até aqui,
e até a próxima!
Resgatei um texto que havia publicado em 2019 com este tema inspirada por este outro aqui, da sempre tão sensível e talentosa (e minha amiga pessoal :) Anna Vitória, que também nunca para, mesmo quando tudo parece jogar contra
"Talvez eu sinta falta mais de quem eu era naquela época do que do mundo que me cercava, do qual me lembro pouco, apenas recortes selecionados. Mas queria retomar aquele fôlego, aquele jeito de ver e sentir, de engolir tudo." amei 🥹❤️
Ai amiga, tô num mood tão “mas o que eu faço com tantas cicatrizes, com tantas lições com tanta força?” - cansada, porém resistindo.
Nadando, porém deixando a maré levar um pouco, é isso que espero pra outubro 🌬️