Eu penso na morte todos os dias. Não de um jeito mórbido ou fúnebre, mas de uma maneira quase fatalista mesmo: por nos aguardar (a todos) como único destino inescapável e infalível, ela pode ser usada como uma régua pela qual medimos nossas escolhas: será que isso vale meu tempo/energia/atenção?
Quando digo que penso na morte todos os dias, não é o tempo todo, obviamente, mas algumas vezes, como se fossem questionamentos soprados ao pé do ouvido por um espírito ancestral e mais sabido: se não visse seus pais novamente, você realmente se irritaria hoje com essas pequenezas da convivência em família? Se nunca mais você pudesse ter a chance de voltar a este lugar onde você está agora, você ficaria mais tempo aí, olhando ao redor? Se soubesse que hoje é seu último dia aqui, o que você faria diferente? O que faria igual?
Nem tudo precisa ser grandioso e épico, às vezes são eventos corriqueiros mesmo que juramos que vão acontecer de novo amanhã ou na semana seguinte e, ora veja só, a vida prega suas peças e… nunca mais passamos por aquilo de novo. Claro que nada é igual e tudo o que vivemos é de alguma forma diferente, porque nós não somos os mesmos blábláblá, mas você entende o que quero dizer: ações que consideramos triviais e que se repetem de forma cotidiana e um dia… simplesmente não mais acontecem, e nos lembram do fluxo da vida e das mudanças, de que “tudo está em constante movimento”. Comigo ocorreu de forma bem banal recentemente, e foi o suficiente para servir de lembrete: em fevereiro do ano passado, minha mãe me levou para fazer pilates com ela, de tanto que gostava das aulas e da professora. Então, quando estou em São Paulo, vamos juntas às sextas-feiras. No início deste ano a professora nos contou que estava grávida e tiraria uns meses de licença assim que o bebê nascesse — ate aí tudo normal e esperado. Em agosto estive todas as sextas lá e, em uma aula, me despedi com “obrigada e até semana que vem, Gio”, como sempre fazia — mas na semana seguinte não pude ir por um motivo qualquer, e depois passei uma das minhas temporadas no litoral, e quando voltei… ela já estava de licença. E nos informaram que não iria mais retornar — tinha decidido ir para outra unidade. Ou seja: a aula que eu fazia toda semana com a minha mãe há um ano e meio não existe mais (pelo menos não da mesma maneira de antes, com a professora que ela adorava). Tudo muda o tempo todo no mundo.
(…) Em uma cultura como a nossa, na qual poucos de nós buscam conhecer o amor verdadeiro, o luto geralmente é sobrepujado pelo arrependimento. Nós nos arrependemos das coisas não ditas, dos conflitos que ficaram sem reconciliação. Vez ou outra, quando me pego esquecendo de celebrar a vida, desatenta em relação ao fato de que acolher a morte pode elevar e aprimorar a maneira como interajo com o mundo, tiro um tempo para pensar se eu estaria em paz sabendo que deixei alguém sem dizer o que estava em meu coração, que parti com palavras duras. Tento diariamente aprender a me despedir das pessoas como se pudéssemos nunca mais nos ver. Essa prática nos faz mudar o modo como falamos e interagimos. É uma forma de viver conscientemente.
A única forma de viver uma vida em que, como canta Edith Piaf, “não me arrependo de nada” é despertando para a consciência do valor do modo de vida correto e da ação correta. Entender que a morte está sempre conosco pode servir como um lembrete fiel de que o tempo para fazer aquilo que queremos fazer é sempre agora, e não algum futuro distante e inimaginável. O monge budista Thich Nhat Hanh ensina, em Our Appointment with Life: Discourse on Living Happily in the Present Moment [Nossa hora marcada com a vida: discurso sobre viver feliz no momento presente], que nós encontramos nosso self verdadeiro ao viver plenamente no presente: Voltar ao presente é estar em contato com a vida. A vida só pode ser encontrada no presente, porque “o passado não é mais” e “o futuro ainda não chegou”. Nosso compromisso com a vida é no momento presente. O lugar de nosso compromisso é bem aqui, exatamente neste lugar. Por vivermos numa cultura que sempre nos encoraja a fazer planos para o futuro, não é tarefa fácil desenvolver a capacidade de “estar aqui agora”.
Quando vivemos plenamente no presente, quando reconhecemos que a morte está sempre conosco, e não apenas no momento em que damos nosso último suspiro, não ficamos devastados por acontecimentos que não podemos controlar — a perda de um emprego, a rejeição de alguém com quem esperávamos nos conectar, a perda de um amigo ou companheiro de longa data. Thich Nhat Hanh nos lembra que “tudo o que buscamos só pode ser encontrado no presente” e que “abandonar o presente para buscar as coisas no futuro é jogar fora a substância e se apegar à sombra”. Estar aqui agora não significa deixar de fazer planos, mas aprender a investir apenas uma pequena quantidade de energia na elaboração de projetos para o futuro. E, uma vez que esse planejamento esteja feito, nos libertamos do apego a eles. Às vezes, é de muita ajuda escrever nossos planos para o futuro e deixá-los de lado, fora da vista e fora da cabeça.
Aceitar a morte com amor significa que abraçamos a realidade do inesperado, de experiências que não podemos controlar. Nós não precisamos ter ansiedade infinita e nos preocuparmos se vamos realizar nossos objetivos ou planos. A morte está sempre ali para nos lembrar que nossos planos são transitórios. Ao aprender a amar, aprendemos a aceitar a mudança. Sem mudança, não podemos crescer. Nosso desejo de crescer no espírito e na verdade é como nos posicionamos diante da vida e da morte, prontos para escolher a vida.1
(bell hooks, em "tudo sobre o amor", capítulo 11. perda: amar na vida e na morte)
Em setembro reli este livro tão importante e este trecho em especial me pegou, por ser algo que já tento praticar há uns anos: estar consciente da morte, e por isso escolher a vida. Quão poderoso é isso?
“dê flores aos vivos”
Vi esta frase numa charge tem muito tempo e nunca mais esqueci. Não que nossos mortos não mereçam nossas lembranças, honrarias e homenagens, mas eles não são os únicos: para mim, a frase soa menos imperativa e mais como um convite ao agora, a olharmos para o quê (ou melhor, quem) temos hoje. Ainda mais na semana do feriado de finados.
E aconteceu algo curioso enquanto eu escrevia esta mensagem: fui resgatar um e-mail que havia enviado no auge da pandemia, em junho de 2020, exatamente sobre isso, no meu projeto dos "drops diários pra salvar o minuto". E a imagem que eu usei para ilustrar é uma que eu adoro, da qual me lembro até hoje (e que inclusive me ocorreu quando fui fazer o clique acima, alguns dias atrás, numa viagem de fim-de-semana com a família para Holambra, para comemorar o aniversário da minha mãe2). Fui então olhar outros registros da fotógrafa para ver como ela estava e… soube que ela faleceu. De câncer, aos 41 anos, em junho de 2021. Teria como ser mais explícita que isso? Eu não sei. Só sei que fiquei meio em choque ao ler a notícia, mesmo escrevendo exatamente sobre este tema — parece que nunca estamos preparados para a morte, mesmo quando acreditamos estar conscientes de sua inevitabilidade3.
“(…) O problema é que você não pode se apegar a nada. É só deixar ir. Isso tudo é deixar ir. Desculpe, é um pouco emotivo… Sim, esta vida é só deixar ir. E a ideia de se apegar, eu gosto da ideia de saborear as coisas. Acho que os jesuítas são muito bons nisso. Aprendi isso com os jesuítas: eles tinham uma oração maravilhosa chamada Examen4 que faziam todas as noites. E é praticamente a mesma coisa que o filme de Richard Curtis, não sei se você já viu, “Questão de Tempo”: o personagem de Donald Gleason começa dizendo, ‘então o que eu fiz foi começar a viver cada dia duas vezes e escolher ver mais profundamente e estar mais presente em cada momento aparentemente pequeno e banal’.
E não é preciso ser jesuíta, católico ou mesmo religioso para fazer isso, mas é uma bela prática ao final do dia, todas as noites, deitar-se, fechar os olhos, rever o dia, pensar nos três ou quatro momentos em que, como diriam os jesuítas, você sentiu a presença de Deus bem perto de você, mas preencha o espaço em branco: em que você se sentiu vivo, em que se sentiu próximo de si mesmo, em que se sentiu conectado ao mistério, às forças invisíveis, e volte a esses momentos e saboreie a sensação de que pode ser, sabe, algo relacionado à natureza, uma conversa com um amigo, um tempo passado com um filho, o que quer que seja.
“E então você faz isso, passa o dia inteiro e percebe onde estava ciente desse mistério. E então percebe novamente onde errou o alvo, pede perdão e pede para fazer melhor amanhã. Acho que leva 15 minutos e, normalmente, você adormece durante esse tempo e tem um sono melhor porque está se conectando e saboreando as coisas que importam. Mas, nossa, é tudo tão passageiro e está indo embora constantemente.”
(versão em português de um trecho desta lindeza de entrevista do Andrew Garfield no Modern Love, do New York Times5)
Hoje deu vontade de falar pouco e deixar essas passagens que me comoveram falarem por mim. Tenho acompanhado de perto a finitude da vida através da doença de pessoas próximas e pensado muito na passagem do tempo, e na morte como o compasso de urgência que rege tudo o que está ao nosso redor, das artes às ruínas, dos desencontros ao crepúsculo. Tentando entender qual a melhor forma de direcionar nossos investimentos (alô, capitalismo) quando os recursos são sim escassos: já que não temos todo o tempo do mundo (mesmo quando a gente acha que tem), será que estamos colocando nossa energia, atenção e amor no que realmente importa?
Que pelo menos por uns minutos por dia, possamos contemplar o mistério, nos sentirmos vivos, entender que há tanto mais e não há, que só o agora é infinito. Que possamos abrir os braços e criar um país.
Estas são as minhas flores para você.
para Antônio Cícero e Jesse Marble
ᡣ𐭩 DO ARQUIVO:
o drops escolhido do arquivo de hoje é o de um ano atrás, sobre “vivenciar plenamente a diferença entre não estar morto e estar realmente vivo”:
ᡣ𐭩 DOS EXCLUSIVOS:
o último drops para assinantes pagos fala sobre olhar o nosso corpo como um brinquedo cheio de potencial e possibilidades:
+ também fiz um videozinho narrando um trecho dele para o instagram, se quiser ver está aqui:
Ambos os textos (assim como tudo o que está no arquivo completo), estão disponíveis apenas para os assinantes pagos, e eu adoraria que você considerasse contribuir ღ
Por R$ 10,70 mensais você já tem acesso a tudo o que foi enviado de 2016 até hoje (mais de 150 newsletters!) e à edição extra enviada todo mês (com um texto mais pessoal e curadoria de links, uma despretensiosa seleção de tudo o que me inspira e torna a minha vida maior e mais bonita — e que eu espero que possa te inspirar também).
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o sol de dentro nunca se põe
agora uma pausa rápida para um momento auto-jabá: trabalho há duas décadas com conteúdo online e impresso e, de uns tempos para cá, comecei a produzir material para amigos e conhecidos como "ghost writer": desde textos para newsletters corporativas até posts e reels. tem sido algo que tenho gostado muito de fazer e tem me trazido novas oportunidades e perspectivas (além de ajudar a pagar os boletos né? que todos temos, não podemos negar haha ;)
também faço curadoria de materiais para relatórios e guias personalizados para são paulo, após anos e anos de experiência acumulada no rent a local friend desde 2009 (tem alguns exemplos e matérias aqui).
se você tem interesse em algo parecido (para seu perfil pessoal ou profissional), ou quiser saber mais, me manda um alô! é só responder este email diretamente que a gente conversa, ou clique aqui:
por hoje é só. espero que esteja bem dentro do possível, e que seja capaz de dar flores (literais e figuradas ;) a todos que merecem sua atenção e amor — na semana de finados, e em todas as outras também.
obrigada por chegar até aqui,
e até a próxima!
Este trecho final do capítulo está copiado aqui na íntegra, mas os fragmentos em negrito são grifos meus <3
Dentre as minhas maneiras corriqueiras prediletas de “dar flores aos vivos” está essa: valorizar o tempo que tenho com as pessoas que amo
Enviando flores em pensamento a esta artista que partiu cedo demais, construiu uma família linda, lutou até o fim e deixou imagens cheias de encanto e sensibilidade para nos emocionar
Achei em português como Exame Inaciano, ou “Oração de Atenção Amorosa” — mais aqui no site dos Jesuítas Brasil se quiser se aprofundar
Se você entende bem inglês, recomendo ouvir tudo: a leitura dele da coluna é de chorar junto e aquecer até os corações mais gelados! crush de todos os crushes <3
Ai amiga, um exercício tão difícil esse de estar presente só no presente, de não se apegar às expectativas, de estar ciente da finitude e do poder libertador que isso tem… difícil