Pouco mais de uma década atrás, eu costumava viajar com malas grandes entulhadas de coisas. No meio do caminho, perdi rodinhas e a paciência por excesso de peso, tive que deixar itens no meio do caminho e pagar taxa extra por excedente de bagagem. Os anos foram passando e com eles vieram os pequenos aprendizados adquiridos com a experiência: levar itens menores, pensar com cuidado no que se vai usar, comprar menos lembranças para trazer na volta, só carregar o que tem utilidade. Não sou uma planejadora nata e esse exercício de edição exige bastante energia e concentração da minha natureza distraída-sonhadora-"cabeça nas nuvens", pouco afeita a conceitos terrenos e a tangibilizar esforços. Mas a satisfação de andar leve supera tudo: como é bom não me preocupar com peso extra, itens inúteis, dúvida com muitas opções à disposição e bagunça feita por conta da infinidade de peças. E aqui obviamente não estou falando só sobre bagagem: estou falando sobre tudo o que a gente carrega conosco pra vida.
A metáfora da mala, embora seja óbvia, veio bem a calhar numa época em que passei um bom pedaço dos últimos meses planejando uma viagem longa como não fazia há tempos — e também quando uma nostalgia brutal de outros abris mais gentis me tomou de jeito. Se o assunto é bagagem, que seja então sobre ela e sobre o que levo sob os ombros: parar e reconhecer o tanto de passado que existe no meu presente e que se derrama no meu futuro. Os tempos verbais parecem só ser tão lineares nas aulas de português da escola, porque na nossa vidinha do dia a dia, é um emaranhado cheio de nós em que tudo se mistura, em que haja-hoje-para-tanto-ontem.
Às vezes sem notar, nos deixamos contaminar pelo peso de experiências vividas, permitindo que ele nos impeça de começar novas histórias: a confiança traída, o coração maltratado, a autoestima machucada e todas as vivências tão humanas que todos atravessamos em algum momento podem minar nossas forças e abertura pro mundo, de maneira que não há disposição ou resiliência que sobrevivam ao medo de ter nossas expectativas novamente frustradas. Sem que a gente perceba, o peso vai se acumulando sorrateiramente, e pouco a pouco nos vemos num mar de inseguranças e aflições, imersos em ansiedades e angústias, incapazes de seguir adiante.
Com o tempo, a tendência é acumular mais e mais bagagem (da literal e da figurada), e a gente percebe que o desapego pode vir mais por necessidade do que por conceito ideológico: carregar peso além da conta agrava a dor nas costas e sobrecarrega os joelhos, endurece as artérias e enfraquece o coração. Passam os anos, o peito amolece e não queremos mais levar tanto pertence sem serventia porque atrasa a vida e a viagem, porque a taxa extra metafórica que não é cobrada pela companhia aérea é a que nos debita toda a mágoa que muitas vezes ainda guardamos sem perceber e levamos sem precisar: das vezes em que fomos rejeitados, mal compreendidos ou pouco valorizados; como se prezar por aquele rancor envelhecido fosse algum tipo de vingança que vai chegar a seu tempo em quem nos causou tanto sofrimento. Spoiler: não vai. "Mágoa é um veneno que a gente toma esperando atingir o outro", um amigo me disse há mais de quinze anos, e nunca mais esqueci. O quanto a gente se envenena todos os dias, mesmo sem se dar conta? Enquanto seguimos achando que estamos "dando uma lição" em quem nos feriu por ignorância ou desinteresse, o que acontece é que acabamos sofrendo em dobro — por quem nos machucou inicialmente, e por ficar nos envenenando com essa amargura que insistimos em reviver.
Sei que tudo tem o seu tempo de processamento, e mesmo o perdão precisa ser elaborado e amadurecido antes de efetivamente acontecer. Querer nem sempre é poder. Mas perdoar é algo que fazemos pela gente, e não pelo(s) outro(s): só quando decidimos não sermos mais reféns do que já aconteceu é que nos damos permissão para aceitar que nada muda no passado, e podemos nos libertar de carregar esse peso para viver tudo o que ainda está por vir. “Se estamos nos prendendo a um rancor, é este rancor que está nos prendendo”. Não é a gente que tem poder sobre essa mágoa: é ela que tem poder sobre a gente, que embaça nosso presente e turva o futuro. Perdoar não é esquecer: podemos recolher o que foi aprendido para ponderar decisões futuras, sem seguir levando conosco esse fardo pesado do amargor.
“(…) É abrir mão daquilo que nos incomoda e nos prende, coisas e situações que restringem a nossa liberdade e atrapalham os nossos movimentos. (…) Fala de uma leveza que inclui a angústia, a tristeza, as inseguranças, a precariedade da existência. (…) a leveza que proponho aqui é aquela que reconhece a existência das sombras e as incorpora. Aquela que admite que a vida é barra-pesadíssima e que nem sempre é possível ver um lado bom no que nos desgasta, nos amedronta, nos faz sofrer. Mas que, mesmo quando estivermos tristes, ansiosos ou deprimidos, possamos ser pessoas que não abrem mão da civilidade, da compaixão e do mínimo de elegância para conviver. Travel light, recomendam os guias de viagem; ou seja, viaje leve. Não é sair pelo mundo sem bagagem. É simplesmente eliminar o excesso de peso.”
(trecho de “A arte de ser leve”, de Leila Ferreira)
E aqui não é sobre o julgamento do que nos é importante, do que vale a pena “levar na vida que se leva” e do que pode ser descartado — cada um que sabe de si, de seus valores e do que lhe é valioso. Não existe certo ou errado, existe o que faz sentido pra gente. O que quero para mim é apurar esse olhar cuidadoso para o que temos ao nosso redor e no nosso interior e entender qual é a bússola que está guiando nossos direcionamentos — e tomar decisões a partir disso. Afinal, nossa vida é só nossa, e quem a vive somos nós — com toda a dor e a delícia que só nós conhecemos.
Na minha bagagem metafórica, ocupam bastante espaço os dias mais felizes da minha vida, assim como alguns dos momentos mais tristes que já vivi também. As viagens, os shows, os abraços, as risadas, os choros de alegria e os de emoção — e os de dor, também. Os sonhos realizados, os beijos que viraram meu mundo de cabeça pra baixo, os cheiros que me transportam a outras dimensões, os momentos de estômago gelado de paixão ou de apreensão, os acidentes traumáticos, o peito dilacerado, as rejeições que mudaram meu eixo e colocaram tanto em perspectiva. Tudo isso me trouxe até aqui: tento eliminar os excessos mas não nego as rachaduras e ruínas. É através delas que entra o sol: elas são parte fundamental de quem sou hoje, minhas cicatrizes pintadas com ouro no meu kintsugi pessoal. Já na bagagem literal, têm lugar privilegiado os livros, os caderninhos de anotação, as nécessaires e as minhas roupas favoritas, porque são importantes pra mim — pra você talvez sejam calçados, acessórios ou outro item mais relevante. Se for o que você quiser carregar, isso é tudo o que deve contar.
Reduzir carga, estímulos e inutilidades abre espaço e disposição pra gente focar no que realmente importa: no que enche o peito de ar, no que pulsa o coração e faz o olho brilhar. No que amamos, em quem amamos, no que traz cor, alegria e sentido pro nosso mundo. E que de fato queremos (e podemos) carregar conosco. Que seja leve.
☆ DROPS PASSADOS:
Conforme comentei na edição de fevereiro, os drops foram enviados desde 2016 toda semana com edições totalmente inéditas e, além do texto com uma reflexão no início, tinha três ou quatro recomendações de temas que me interessavam e curadoria de links comentados. Como a maioria se mantém relevante até hoje, me deu vontade de retomar esse baú virtual e olhar para ele com mais carinho; então todo mês, vou escolher uma edição passada para retomar aqui. Vem comigo:
ᡣ𐭩 a edição de hoje fala sobre perdão e é uma das que teve maior repercussão até hoje (também foi por causa dela que conheci a querida Lidy, escritora e minha colega de newsletters aqui no Substack! essa reflexão mexeu tanto com ela que ela quis ir até a minha casa me levar uma latinha de brownies para me agradecer! não é incrível?! lembro que fiquei muito tocada, e achei mágico ser capaz de co-mover uma pessoa a este ponto com algo que eu escrevi :)
Assim como tudo o que está no arquivo completo, ela está disponível apenas para os assinantes pagos, e eu adoraria que você considerasse contribuir com esses drops ♡ Por R$ 10,70 mensais você já tem acesso a todo o arquivo (mais de 150 newsletters!) e à edição extra enviada todo mês (com um texto mais pessoal e curadoria de links).
Claro que o dinheiro sempre é importante para artistas independentes (e ele é uma forma de demonstrar apoio e incentivo a quem produz algo que gostamos), mas não é só sobre isso: a conversão para assinatura paga também mostra à plataforma quem tem relevância, suporte e engajamento; e isso ajuda a alcançar mais gente:
Por último mas não menos importante, gostaria de compartilhar duas lindezas que aconteceram comigo em abril, este mês que arrancou meus pés do chão (e nem foi de paixão, como já aconteceu em tantos abris mais azuis de anos anteriores, mas num tombo literal mesmo, que rompeu o ligamento do meu tornozelo esquerdo logo no 1o dia do mês). É a vida acontecendo, e no meio das quedas também existem os voos:
ᡣ𐭩 meu primeiro evento literário, em que estive na livraria Na Nuvem acompanhada de outros colegas escritores para falar sobre os caminhos da escrita e de (v)ida, e foi uma das experiências mais bacanas que vivi nos últimos tempos. Conheci (e reconheci) autores com histórias tão ricas e relevantes, recebi visitas mais que amadas e saí com o peito explodindo estrelas. Dá pra ver um pouco mais aqui »
ᡣ𐭩 um vídeo que me arrebatou criado pela sensível e talentosíssima Glória Maciel interpretando um trecho do meu livro, essa amiga tão querida e generosa que faz parte do meu coletivo artístico (e que tem uma das contas mais divertidas e poéticas do instagram, vale o follow!):
por hoje é só. maio será de fortes emoções por aqui e meu coração parece uma bateria de escola de samba! espero que o seu mês também seja bem emocionante e lindo.
se quiser compartilhar comigo o que te fez prender a respiração daí (ou o que vai na sua bagagem de mão), vou adorar saber.
obrigada por chegar até aqui,
e até a próxima!
um grande beijo,
com amor
nath
Você sempre acerta o timing! ❣